quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Salvador: um olhar sobre o carnaval brasileiro.





Mais um carnaval em Salvador, arquibancadas e camarotes construídos, praças e patrimônios cercados para evitar depredações, iluminação extra instalada no decorrer dos circuitos e nas proximidades, banheiros químicos distribuídos estrategicamente, cordeiros contratados, televisão, jornais, outdoors e todos os meios possíveis de comunicação com propagandas de blocos mil e mercados abarrotados de cervejas, os de grande porte, chegam inclusive a utilizar o espaço do estacionamento como posto oficial de venda. "Barracas" instaladas por todo o percurso, vendedores oficializados para não serem autuados e também "clandestinos" preparam-se para dormirem literalmente na rua durante os sete dias (podendo para evitar a exposição deixar os seus filhos em abrigos nesse período caso julguem prudente, sendo também uma medida preventiva para evitar  o trabalho infantil), apesar de todos os reveses, esses trabalhadores encaram a difícil rotina sentindo-se recompensados pelo lucro extra que a festa lhes representa. Além de contar é claro com foliões devidamente ensaiados, por participarem de tantos shows feitos a título de "Ensaios de Verão", muitos de incontestável qualidade e alegria.

E os dias de festividade se seguirão e enquanto uns pulam e divertem-se outros trabalham arduamente, catadores irão recolher as latinhas, a multidão irá ferver quando artistas consagrados passarem, a beleza dos blocos afros também se fará presente, desfilando especialmente no Afródomo (circuito dedicado exclusivamente aos blocos afros) o qual apenas a longo prazo é que poderá gerar avaliações dos seus efeitos e validade. Trios dispensáveis, com baixa infraestrutura e qualidade técnica também estarão presentes e não faltarão protestos com a conhecida Mudança do Garcia, que graças a Deus já não conta com a presença de animais e se tornou um espaço de protestos, irreverência e claro politicagem.

 Este ano os cordeiros (gente que separa e protege gente de gente), continuam a lutar para garantir os seus direitos básicos, como fornecimento suficiente de água para beberem durante os exaustivos percursos, protetores auriculares e luvas, além da oferta de um lanche digno. Sabemos que critérios para exercer a função nem sempre ocorrem, por isso se vê de tudo, menores de idade, mulheres, idosos e até grávidas, realmente como diz a música, acredito  serem os mais valentes nessa luta do rochedo com o mar♪. 

Durante a contratação, enquanto alguns blocos (os de grande porte) já emitem quatro vias de contrato e cumprem os seus deveres, outros provavelmente nem contrato fazem. A existência de um sindicado dos cordeiros, ainda que contando até o ano de 2013 com apenas oito mil dos cinquenta que trabalham na festa já é um avanço da categoria que quem sabe futuramente ganhará uma cadeira (já reivindicada) no conselho municipal do carnaval, é preciso dar voz e vez a esses que se tornaram fundamental na atual dinâmica carnavalesca, ainda que tal função lamentavelmente remeta a vergonhosa herança escravocrata que mais dia menos dia precisa sim é ser superada. Vale a pena conferir o documentário Vida de Cordeiro lançado em 2008, apesar de terem havido algumas mudanças, significativa parte dessa realidade continua a mesma.


 Bebendo e...

      
 No carnaval bebe-se e muito álcool, bebe-se para se animar e esquentar para a festa, bebe-se para continuar animado e depois já alcoolizado bebe-se e nem se sabe mais para quê. Também beija-se muito, é o famoso “ficar”,  fica-se daqui e de lá, existem "gandhys" que nem vão até o bloco, saem e ficam nas cordas de outros trios para paquerarem as as moçoilas trocando colares por beijos, é claro que os legítimos Filhos de Gandhy permanecem no bloco durante o percurso embalados pelo afoxé, ainda que sem abrir mão do já habitual clima de paquera.
 Em um clima permissivo, regido pela exacerbação do prazer que deve ser desfrutado ao máximo, em todo o seu potencial, alguns foliões passam do beijo, por isso, preservativos são distribuídos, postos de testagem rápida de HIV/Aids são instalados (o que efetivamente possui baixíssima validade, uma vez que se contraído durante o carnaval, não haverá tempo de detecção e os que já são portadores não me parecem ter nessa ocasião momento propício para saberem dessa notícia e sim dirigindo-se aos centros de testagem que oferecem um real suporte psicológico e de acompanhamento medicamentoso). Apesar desses esforços, por motivos mil, mesmo assim, lá para setembro/outubro nascem os "filhos do carnaval" (se não forem abortados), quem é o pai pode ser um enigma muito difícil de ser desvendado.

 As pessoas que vão para essa festividade são de mil matizes, a maioria realmente quer se divertir e desfrutar dos prazeres tão urgentemente necessários quanto descartáveis. A maior parte acredita que beber (muitas vezes bastante) é indispensável, muitos jovens saem com seus amigos, àquela turma boa, querendo mesmo é “pular”, “ficar”, “curtir’... Entretanto, existem os que saem não só com o coração armado, mas também com as mãos, com sede de sangue, pensam em roubar, brigar, agredir e até mesmo matar, os boletins dos hospitais, especialmente de urgência e emergência, assim como dos postos colocados ao longo dos percursos são lamentáveis e as imagens que com certeza os programas sensacionalistas mostrarão também serão.
 Mesmo com policiais na rua (trazidos inclusive do interior para a capital) pretendendo coibir atuações criminosas e violentas, estes não são capazes de conter completamente tais ações e pela própria formação truculenta também acabam por atuar mais na repressão do que na prevenção tendo como maior base de intervenção a violência. Alguns policiais despreparados (quero acreditar que uma minoria) abusarão do poder e baterão a torto e a direita majoritariamente em jovens negros, tendo claramente como pano de fundo questões sócio-raciais. Durante as ações o tráfico de drogas é um dos elementos que despontam nas apreensões, apesar do encarceramento atingir mais fortemente os não abastados, o tráfico permeia todas as classes sociais envolvidas na festividade e certamente também circula nos camarotes mais requintados, camarotes que diga- se de passagem chegam ao cúmulo de conseguir concessão para serem erguidos em plena praça pública, utilizando um espaço de direito do cidadão para fins privados.


 As emissoras privadas mostrarão o carnaval oficial (comprometido com ideais mercadológicos) e a TV pública e educativa fará uma cobertura levando pensadores para abordarem ampla e criticamente essa manifestação cultural, mostrando inclusive o circuito Batatinha (localizado no Centro Histórico- Pelourinho), o qual mantém o carnaval na sua essência mais genuína; sem cordas, reunindo a família, as crianças fantasiadas, dançando e cantando atrás das diversas bandas e fanfarras.

Quarta-feira de cinzas...   
   

  Depois de tanto pular e outros de trabalharem, a quarta feira de cinzas chegará, aqueles que trabalharam juntamente com os que não tiveram condições de retornar para casa e dormiram na areia, ficarão para participar do inacreditável arrastão... Como sempre os banheiros químicos não darão conta das multidões e os jatos de água e sabão serão aquém do necessário, assim, somente a chuva poderá lavar efetivamente esta cidade, arquibancadas e camarotes começarão a ser desmontados e se não forem devidamente cobrados pelos órgãos de fiscalização, demorarão em fazer a cidade voltar à normalidade tendo o engarrafamento como um dos mais desagradáveis efeitos colaterais (desde a construção até o desmonte).

Carnaval é uma festa onde as diferenças (positivas e negativas) construídas ao longo da história se apresentam em poucos dias, por isso, ficam tão ampliadas às alegrias e tragédias. É mesmo urgente pensá-lo e refleti-lo em nível de Brasil, para que nos conhecendo melhor possamos propor as mudanças mais que necessárias inclusive pensando meios cada vez mais efetivos de coibir que brasileiros ou estrangeiros saiam de seus estados, países e usem esse momento para fazerem turismos sexuais, soltarem suas feras, deixarem seus lixos e depois voltarem para suas casas  nos deixando com feridas que tornam a ser reabertas a cada fevereiro e não cicatrizam jamais por não deixarem de fazer vítimas. 

Interessante o dado da pesquisa divulgada no ano de 2013 pela secretaria estadual de cultura em parceria com a superintendência de estudos econômicos e sociais da Bahia que revela que 77,9% dos soteropolitanos não participam da festa momesca, viajando ou permanecendo em casa assistindo pela TV, pelo jeito carnaval tem se tornado uma festa para visitantes. Brincar com responsabilidade, na pipoca, no bloco, no camarote, tomar cerveja para refrescar (ainda que água, especialmente de coco e sucos sejam além de refrescantes, hidratantes, justo oposto do álcool), beber socialmente, sem fazer disso a mola propulsora para se sentir bem e se divertir, manter o coração desarmado, a mente consciente sem o direito de perder a lucidez e agir com insânia, sem ressacas físicas ou morais parece ser o modo mais equilibrado de vivenciar este período que nos convida a exacerbações... Apesar das peculiaridades de cada estado em comemorar, precisamos saber o que significa ser o país do carnaval e estar entre as cidades que promovem a festa. Para quem sabe brincar e vai para o carnaval divirta-se e muito, p/ quem é de descanso, aproveita o período para recarregar as baterias!!    







4 comentários:

  1. Que texto!!! Descreve muito bem o carnaval, o que é melhor, com um olhar sensível e realista. É a visão nua e crua, só vê quem realmente estiver disposto. Quem não está coloca a fantasia, toma "umas e outras" e cai na folia... pra voltar a "realidade" só na quarta-feira de cinzas.
    Eu quero aproveitar e acrescentar o meu testemunho sobre a minha experiência trabalhando no carnaval. Fui contratada para "jogar" brindes na multidão do alto do carro de apoio do Chiclete com banana, entre os brindes tinham bandanas que as pessoas enlouquecidamente imploravam para que jogássemos (depois entendi que o desespero era para usar lança-perfume e algum outro entorpecente envolvido no tecido). No meio daquela agitação toda, visualizei uma placa num poste onde tinha escrito: Diga não ao trabalho infantil, denuncie! Imediatamente eu vi uma criança com um saco enorme cheio de latinhas embaixo dessa placa, implorando que eu jogasse uma bandana. Foi de doer! O trio seguia e as pessoas da pipoca se acotovelavam e se empurravam lá em baixo por Bel Marques e pelas benditas bandanas. Tem uma música dele que diz: "...Daqui do alto eu te vejo..." Não creio que ele viu o que eu vi. Gente se esmurrando, sangrando, a Polícia mandando ver, drogados com as pernas bambas rolando pela lama e a pipoca com os olhos de pedintes. Sobre as bebidas alcoólicas é aquele negócio, enquanto os foliões estão com o "cérebro" ocupado consumindo desesperadamente a marca A ou B, os nossos reais interesses são usurpados. Hoje ouvi no rádio uma campanha em que o Durval Lelys canta que a cerveja piriguete vai custar 1,00 entre algumas "pérolas" que ele canta na letra, ele diz que a pessoa tem que quebrar o cofrinho. Ai já viu, né? Vai economizar dinheiro pra quê? Tem que encher o bolso dele e de todo esse cartel chamado carnaval. Parei de trabalhar nessa festa, pelo todo... me sentia uma impostora a todo instante. Então, os incomodados que se mudem. O Fiz!

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  2. Ah Tati a sua coragem de viver segundo aquilo que acredita é maravilhosa, tem que ser muito sensível e autêntica p/ isso. Sabe, a uns três anos que escrevo sobre o carnaval, acrescento novos dados p/ mantê-lo atualizado e no entanto a substância muda pouco porque o quadro geral segue o mesmo e se ele segue assim,vamos continuar a descrevê-lo/denunciá-lo, como tudo em nosso país temos muito por fazer e conquistar, do jeito que estar não podemos aceitar/pactuar... Esta nação precisa honrar o seu povo e a sua grandeza!!

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  3. Oi Bárbara,
    Que texto ótimo e informativo.
    Esse outro lado do carnaval na Bahia é pouco divulgado...
    gostei de saber desses pormenores. Achei lamentável o que ocorre por aí.
    Aqui em São Paulo e também no RJ os desfiles das escolas de samba viraram um espetáculo industrializado.
    Custa caro demais para assistir no sambódromo.
    Sou de descanso, então vou aproveitar o feriado prolongado para recarregar as baterias, estou precisando!
    Um grande abraço \o/

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    1. Oi Clau,

      Pois é, esse quadro a mídia oficial não tem o menor interesse em divulgar e a industrialização do carnaval segue com força total aqui também, o que além de excludente, é bastante empobrecedor... Eu como você prefiro o descanso, esse sim é um bom meio de aproveitar o período!!

      Um abraço ;-)

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