Mais um carnaval em Salvador, arquibancadas e camarotes construídos, praças e patrimônios cercados para evitar depredações, iluminação extra instalada no decorrer dos circuitos e nas proximidades, banheiros químicos distribuídos estrategicamente, cordeiros contratados, televisão, jornais, outdoors e todos os meios possíveis de comunicação com propagandas de blocos mil e mercados abarrotados de cervejas, os de grande porte, chegam inclusive a utilizar o espaço do estacionamento como posto oficial de venda. "Barracas" instaladas por todo o percurso, vendedores oficializados para não serem autuados e também "clandestinos" preparam-se para dormirem literalmente na rua durante os sete dias (podendo para evitar a exposição deixar os seus filhos em abrigos nesse período caso julguem prudente, sendo também uma medida preventiva para evitar o trabalho infantil), apesar de todos os reveses, esses trabalhadores encaram a difícil rotina sentindo-se recompensados pelo lucro extra que a festa lhes representa. Além de contar é claro com foliões devidamente ensaiados, por participarem de tantos shows feitos a título de "Ensaios de Verão", muitos de incontestável qualidade e alegria.
E os
dias de festividade se seguirão e enquanto uns pulam e divertem-se outros
trabalham arduamente, catadores irão recolher as latinhas, a multidão irá
ferver quando artistas consagrados passarem, a beleza dos blocos afros também
se fará presente, desfilando especialmente no Afródomo (circuito dedicado
exclusivamente aos blocos afros) o qual apenas a longo prazo é que poderá gerar
avaliações dos seus efeitos e validade. Trios dispensáveis, com baixa
infraestrutura e qualidade técnica também estarão presentes e não faltarão
protestos com a conhecida Mudança do Garcia, que graças a Deus já não conta com
a presença de animais e se tornou um espaço de protestos, irreverência e claro
politicagem.
Este
ano os cordeiros (gente que separa e protege gente de gente), continuam a lutar
para garantir os seus direitos básicos, como fornecimento suficiente de água
para beberem durante os exaustivos percursos, protetores auriculares e luvas,
além da oferta de um lanche digno. Sabemos que critérios para exercer a função
nem sempre ocorrem, por isso se vê de tudo, menores de idade, mulheres, idosos
e até grávidas, realmente como diz a música, acredito serem os mais valentes nessa luta do rochedo com
o mar♪.
Durante
a contratação, enquanto alguns blocos (os de grande porte) já emitem quatro
vias de contrato e cumprem os seus deveres, outros provavelmente nem contrato
fazem. A existência de um sindicado dos cordeiros, ainda que contando até o ano
de 2013 com apenas oito mil dos cinquenta que trabalham na festa já é um avanço
da categoria que quem sabe futuramente ganhará uma cadeira (já reivindicada) no
conselho municipal do carnaval, é preciso dar voz e vez a esses que se tornaram
fundamental na atual dinâmica carnavalesca, ainda que tal função
lamentavelmente remeta a vergonhosa herança escravocrata que mais dia menos dia
precisa sim é ser superada. Vale a pena conferir o documentário Vida de Cordeiro lançado em 2008, apesar de terem
havido algumas mudanças, significativa parte dessa realidade continua a mesma.
Bebendo e...
No carnaval bebe-se
e muito álcool, bebe-se para se animar e esquentar para a festa, bebe-se para
continuar animado e depois já alcoolizado bebe-se e nem se sabe mais para quê.
Também beija-se muito, é o famoso “ficar”, fica-se daqui e de lá, existem
"gandhys" que nem vão até o bloco, saem e ficam nas cordas de outros
trios para paquerarem as as moçoilas trocando colares por beijos, é claro que
os legítimos Filhos de Gandhy permanecem no bloco durante o percurso embalados
pelo afoxé, ainda que sem abrir mão do já habitual clima de paquera.
Em
um clima permissivo, regido pela exacerbação do prazer que deve ser desfrutado
ao máximo, em todo o seu potencial, alguns foliões passam do beijo, por isso,
preservativos são distribuídos, postos de testagem rápida de HIV/Aids são
instalados (o que efetivamente possui baixíssima validade, uma vez que se
contraído durante o carnaval, não haverá tempo de detecção e os que já são
portadores não me parecem ter nessa ocasião momento propício para saberem dessa
notícia e sim dirigindo-se aos centros de testagem que oferecem um real suporte
psicológico e de acompanhamento medicamentoso). Apesar desses esforços, por
motivos mil, mesmo assim, lá para setembro/outubro nascem os "filhos do
carnaval" (se não forem abortados), quem é o pai pode ser um enigma muito
difícil de ser desvendado.
As
pessoas que vão para essa festividade são de mil matizes, a maioria realmente
quer se divertir e desfrutar dos prazeres tão urgentemente necessários quanto
descartáveis. A maior parte acredita que beber (muitas vezes bastante) é
indispensável, muitos jovens saem com seus amigos, àquela turma boa, querendo
mesmo é “pular”, “ficar”, “curtir’... Entretanto, existem os que saem não só
com o coração armado, mas também com as mãos, com sede de sangue, pensam em
roubar, brigar, agredir e até mesmo matar, os boletins dos hospitais,
especialmente de urgência e emergência, assim como dos postos colocados ao
longo dos percursos são lamentáveis e as imagens que com certeza os programas
sensacionalistas mostrarão também serão.
Mesmo
com policiais na rua (trazidos inclusive do interior para a capital)
pretendendo coibir atuações criminosas e violentas, estes não são capazes de
conter completamente tais ações e pela própria formação truculenta também
acabam por atuar mais na repressão do que na prevenção tendo como maior base de
intervenção a violência. Alguns policiais despreparados (quero acreditar
que uma minoria) abusarão do poder e baterão a torto e a direita
majoritariamente em jovens negros, tendo claramente como pano de fundo questões
sócio-raciais. Durante as ações o tráfico de drogas é um dos elementos que
despontam nas apreensões, apesar do encarceramento atingir mais
fortemente os não abastados, o tráfico permeia todas as classes sociais
envolvidas na festividade e certamente também circula nos camarotes mais
requintados, camarotes que diga- se de passagem chegam ao cúmulo de conseguir
concessão para serem erguidos em plena praça pública, utilizando um espaço de
direito do cidadão para fins privados.
As
emissoras privadas mostrarão o carnaval oficial (comprometido com ideais
mercadológicos) e a TV pública e educativa fará uma cobertura levando
pensadores para abordarem ampla e criticamente essa manifestação cultural,
mostrando inclusive o circuito Batatinha (localizado no Centro Histórico-
Pelourinho), o qual mantém o carnaval na sua essência mais genuína; sem
cordas, reunindo a família, as crianças fantasiadas, dançando e cantando atrás
das diversas bandas e fanfarras.
Quarta-feira de cinzas...
Depois
de tanto pular e outros de trabalharem, a quarta feira de cinzas chegará,
aqueles que trabalharam juntamente com os que não tiveram condições de retornar
para casa e dormiram na areia, ficarão para participar do inacreditável
arrastão... Como sempre os banheiros químicos não darão conta das multidões e
os jatos de água e sabão serão aquém do necessário, assim, somente a chuva
poderá lavar efetivamente esta cidade, arquibancadas e camarotes começarão a
ser desmontados e se não forem devidamente cobrados pelos órgãos de
fiscalização, demorarão em fazer a cidade voltar à normalidade tendo o
engarrafamento como um dos mais desagradáveis efeitos colaterais (desde a
construção até o desmonte).
Carnaval
é uma festa onde as diferenças (positivas e negativas) construídas ao longo da
história se apresentam em poucos dias, por isso, ficam tão ampliadas às
alegrias e tragédias. É mesmo urgente pensá-lo e refleti-lo em nível de Brasil,
para que nos conhecendo melhor possamos propor as mudanças mais que necessárias
inclusive pensando meios cada vez mais efetivos de coibir que brasileiros ou
estrangeiros saiam de seus estados, países e usem esse momento para fazerem
turismos sexuais, soltarem suas feras, deixarem seus lixos e depois voltarem
para suas casas nos deixando com feridas que tornam a ser reabertas a
cada fevereiro e não cicatrizam jamais por não deixarem de fazer vítimas.
Interessante
o dado da pesquisa divulgada no ano de 2013 pela secretaria estadual de cultura
em parceria com a superintendência de estudos econômicos e sociais da Bahia que
revela que 77,9% dos soteropolitanos não participam da festa momesca, viajando
ou permanecendo em casa assistindo pela TV, pelo jeito carnaval tem se tornado
uma festa para visitantes. Brincar com responsabilidade, na pipoca, no
bloco, no camarote, tomar cerveja para refrescar (ainda que água, especialmente
de coco e sucos sejam além de refrescantes, hidratantes, justo oposto
do álcool), beber socialmente, sem fazer disso a mola propulsora para se sentir
bem e se divertir, manter o coração desarmado, a mente consciente sem o direito
de perder a lucidez e agir com insânia, sem ressacas físicas ou morais parece
ser o modo mais equilibrado de vivenciar este período que nos convida a
exacerbações... Apesar das peculiaridades de cada estado em comemorar, precisamos saber
o que significa ser o país do carnaval e estar entre as cidades que
promovem a festa. Para quem sabe brincar e vai para o carnaval divirta-se e
muito, p/ quem é de descanso, aproveita o período para recarregar as baterias!!