quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Carnaval: festa democrática?




Mais um carnaval em Salvador, arquibancadas e camarotes construídos, praças e patrimônios cercados para evitar depredações, iluminação extra instalada no decorrer dos circuitos e nas proximidades, banheiros químicos distribuídos estrategicamente, contudo sempre aquém da demanda populacional, televisão, jornais, outdoors e todos os meios possíveis de comunicação com propagandas de blocos mil e mercados abarrotados de cervejas e outras bebidas alcoólicas.

Barracas instaladas por todo o percurso, vendedores oficializados para não serem autuados e também clandestinos preparam-se para dormirem literalmente na rua durante a festividade. Tais vendedores podem para evitar a exposição, caso não possam deixar seus filhos com parentes ou amigos de confiança, colocá-los em abrigos oficiais durante o período, o que por parte do órgão público vale como uma das medidas preventivas contra o trabalho infantil, a qual habitualmente falha e via de regra costuma ocorrer, uma vez que a família incorpora a criança como mais um trabalhador dentro da economia carnavalesca.

CORDEIROS: A gente que separa gente de gente

Os dias de festividade se seguirão e enquanto uns pulam e divertem-se embalados por grandes hits não apenas do axé como de diversos segmentos, outros trabalharão arduamente, catadores irão recolher as latinhas e os cordeiros claro estarão presentes... Este ano os cordeiros continuarão a lutar para garantir os seus direitos básicos, como fornecimento suficiente de água para beberem durante os exaustivos percursos, protetores auriculares e luvas, além da oferta de um lanche digno. Sabemos que critérios para exercer a função nem sempre ocorrem, por isso se vê de tudo, menores de idade, mulheres, idosos e até grávidas, realmente como diz a música, acredito serem os mais valentes nessa luta do rochedo com o mar♪. 



 Durante a contratação, enquanto alguns blocos (os de grande porte) já emitem quatro vias de contrato e cumprem os seus deveres ainda que muito aquém do ideal, outros provavelmente nem contrato fazem. A existência de um sindicado dos cordeiros, ainda que contando até o ano de 2013 com apenas oito mil dos cinquenta que trabalhavam na festa já é um avanço da categoria que quem sabe futuramente ganhará uma cadeira (já reivindicada) no conselho municipal do carnaval, é preciso dar voz e vez a esses que se tornaram fundamental na atual dinâmica carnavalesca, ainda que tal função lamentavelmente remeta a vergonhosa herança escravocrata que mais dia menos dia precisa sim é ser superada.  Vale a pena conferir o documentário Vida de Cordeiro lançado em 2008, apesar de terem havido algumas mudanças, significativa parte dessa realidade continua a mesma.


BEBENDO E...

No carnaval bebe-se e muito álcool, bebe-se para se animar e esquentar para a festa, bebe-se para continuar animado e depois já alcoolizado bebe-se e nem se sabe mais para quê. Também se beija muito, é o famoso “ficar”, fica-se daqui e de lá, existem gandhys por exemplo que nem vão até o bloco, saem e ficam nas cordas de outros trios para paquerarem as moçoilas trocando os famosos colares por beijos, claro que os tradicionais seguem com o bloco embalados pelo afoxé.  

Tal clima de paquera permeia toda a festividade, claro que mesmo os beijos quando alcançam uma proporção épica podem trazer alguns reveses à saúde como transmissão de doenças, contudo sem entrar nessa seara ou na discussão dessas relações meramente objetais, o que deve valer é a vontade de ambos para o beijo porque caso se dê a revelia ai já implica em ato delituoso merecidamente passível de punição. 

Em um clima permissivo, regado a álcool e outras drogas, regido pela exacerbação do prazer que deve ser desfrutado ao máximo, em todo o seu potencial, alguns foliões passam do beijo e apesar de preservativos serem distribuídos no decorrer dos circuitos, apesar desses esforços, por motivos mil, mesmo assim, lá para setembro/outubro nascem os "filhos do carnaval" (se não forem abortados) e saber quem é o pai pode se tornar um enigma muito difícil de ser desvendado.

Durante a festa também postos de testagem rápida de HIV/Aids são instalados (o que efetivamente possui baixíssima validade, uma vez que se contraído durante o carnaval, não haverá tempo de detecção e os que já são portadores não me parecem ter nessa ocasião momento propício para saberem dessa notícia e sim dirigindo-se aos centros de testagem que oferecem um real suporte psicológico e de acompanhamento medicamentoso).


MÚLTIPLAS INTENÇÕES...



 As pessoas que vão para essa festividade são de mil matizes, a maioria realmente quer se divertir e desfrutar dos prazeres legítimos e outros tão urgentemente necessários quanto descartáveis. A maior parte acredita que beber (muitas vezes bastante) é indispensável, muitos jovens saem com seus amigos, àquela turma boa, querendo mesmo é “pular”, “ficar”, “curtir’... Entretanto, existem os que saem não só com o coração armado, mas também com as mãos, com sede de sangue, pensam em roubar, brigar, agredir, se vingar, o que inclui até mesmo matar, aproveitando o volume da multidão para agir e facilmente se despistar. Os boletins dos hospitais, especialmente de urgência e emergência, assim como dos postos colocados ao longo dos percursos são lamentáveis e as imagens que com certeza os programas sensacionalistas mostrarão também serão.

 Mesmo com policiais na rua (trazidos inclusive do interior para a capital) pretendendo coibir atuações criminosas e violentas, estes não são capazes de conter completamente tais ações e pela própria formação truculenta também acabam por atuar mais na repressão do que na prevenção tendo como maior base de intervenção a violência. Alguns policiais despreparados (quero acreditar/sonhar que uma minoria) abusarão do poder e baterão a torto e a direita majoritariamente em jovens negros, tendo claramente como pano de fundo questões socioeconômicas e raciais.

Durante as ações o tráfico de drogas é um dos elementos que despontam nas apreensões, apesar do encarceramento atingir mais fortemente os não abastados, o tráfico permeia todas as classes sociais envolvidas na festividade também circulando nos camarotes mais requintados, camarotes que diga-se de passagem chegam ao cúmulo de conseguir concessão para serem erguidos em plena praça pública, utilizando um espaço de direito do cidadão para fins particulares, revestindo valor desproporcional ao ganho à esfera pública pela sua utilização.


QUARTA-FEIRA DE CINZAS
   
 Depois de tanto pular e outros de trabalharem, a quarta-feira de cinzas chegará, aqueles que trabalharam juntamente com os que não tiveram condições de retornar para casa e dormiram na areia, ficarão para participar do inacreditável arrastão... Como sempre os banheiros químicos não darão conta das multidões e os jatos de água e sabão serão aquém do necessário, assim, somente a chuva poderá lavar efetivamente esta cidade, arquibancadas e camarotes começarão a ser desmontados e se não forem devidamente cobrados pelos órgãos de fiscalização, demorarão em fazer a cidade voltar à normalidade tendo o engarrafamento como um dos mais desagradáveis efeitos colaterais (desde a construção até o desmonte).

Carnaval é uma festa onde as diferenças (positivas e negativas) construídas ao longo da história se apresentam em poucos dias, por isso, ficam tão ampliadas às alegrias e tragédias. É mesmo urgente pensá-lo e refleti-lo em nível de Brasil, para que nos conhecendo melhor possamos propor as mudanças mais que necessárias inclusive pensando meios cada vez mais efetivos de coibir que brasileiros ou estrangeiros saiam de seus estados ou países e usem esse momento para fazerem turismo sexual, soltarem suas feras, deixarem seus lixos e depois voltarem para suas casas  nos deixando com feridas que tornam a ser reabertas a cada fevereiro e não cicatrizam jamais por não deixarem de fazer vítimas. 


Interessante o dado da pesquisa divulgada no ano de 2013 pela secretaria estadual de cultura em parceria com a superintendência de estudos econômicos e sociais da Bahia que revela que 77,9% dos soteropolitanos não participam da festa momesca, viajando ou permanecendo em casa assistindo pela TV, pelo jeito carnaval tem se tornado uma festa para visitantes. 


EM FIM...

Brincar com responsabilidade, na pipoca, no bloco, no camarote, tomar cerveja para refrescar (ainda que água, especialmente de coco e sucos sejam além de refrescantes, hidratantes, justo oposto do álcool), beber socialmente, sem fazer disso a mola propulsora para se sentir bem e se divertir, manter o coração desarmado, a mente consciente sem o direito de perder a lucidez e agir com insânia, sem ressacas físicas ou morais parece ser o modo mais equilibrado de vivenciar este período que nos convida a exacerbações... Apesar das peculiaridades de cada estado em comemorar, precisamos saber o que significa ser o país do carnaval e estar entre as cidades que promovem a festa. Para quem sabe brincar e vai para o carnaval divirta-se e muito, para quem é de descanso, aproveita o período para recarregar as baterias, do modo que melhor aprouver  bom período carnavalesco para todos!!