Mais um carnaval em Salvador, arquibancadas e camarotes construídos, praças e patrimônios cercados para evitar depredações, iluminação extra instalada no decorrer dos circuitos e nas proximidades, banheiros químicos distribuídos estrategicamente, contudo sempre aquém da demanda populacional, televisão, jornais, outdoors e todos os meios possíveis de comunicação com propagandas de blocos mil e mercados abarrotados de cervejas e outras bebidas alcoólicas.
Barracas instaladas por
todo o percurso, vendedores oficializados para não serem autuados e também
clandestinos preparam-se para dormirem literalmente na rua durante a
festividade. Tais vendedores podem para evitar a exposição, caso não possam
deixar seus filhos com parentes ou amigos de confiança, colocá-los em abrigos
oficiais durante o período, o que por parte do órgão público vale como uma das
medidas preventivas contra o trabalho infantil, a qual habitualmente falha e via de regra
costuma ocorrer, uma vez que a família incorpora a criança como mais um
trabalhador dentro da economia carnavalesca.
CORDEIROS: A gente que separa gente
de gente
Os dias de festividade se seguirão e enquanto uns pulam e divertem-se embalados por grandes hits não apenas do axé como de diversos segmentos, outros trabalharão arduamente, catadores irão recolher as latinhas e os cordeiros claro estarão presentes... Este ano os cordeiros
continuarão a lutar para garantir os seus direitos básicos, como fornecimento
suficiente de água para beberem durante os exaustivos percursos, protetores
auriculares e luvas, além da oferta de um lanche digno. Sabemos que critérios para
exercer a função nem sempre ocorrem, por isso se vê de tudo, menores de idade,
mulheres, idosos e até grávidas, realmente como diz a música, acredito serem os mais valentes nessa luta do rochedo com
o mar♪.
Durante a contratação,
enquanto alguns blocos (os de grande porte) já emitem quatro vias de contrato e
cumprem os seus deveres ainda que muito aquém do ideal, outros provavelmente
nem contrato fazem. A existência de um sindicado dos cordeiros, ainda que
contando até o ano de 2013 com apenas oito mil dos cinquenta que trabalhavam na
festa já é um avanço da categoria que quem sabe futuramente ganhará uma cadeira
(já reivindicada) no conselho municipal do carnaval, é preciso dar voz e vez a
esses que se tornaram fundamental na atual dinâmica carnavalesca, ainda que tal
função lamentavelmente remeta a vergonhosa herança escravocrata que mais dia
menos dia precisa sim é ser superada. Vale a pena conferir o documentário Vida de Cordeiro lançado em 2008,
apesar de terem havido algumas mudanças, significativa parte dessa realidade
continua a mesma.
BEBENDO E...
No carnaval bebe-se
e muito álcool, bebe-se para se animar e esquentar para a festa, bebe-se para
continuar animado e depois já alcoolizado bebe-se e nem se sabe mais para quê.
Também se beija muito, é o famoso “ficar”, fica-se daqui e de lá, existem gandhys
por exemplo que nem vão até o bloco, saem e ficam nas cordas de outros trios
para paquerarem as moçoilas trocando os famosos colares por beijos, claro que
os tradicionais seguem com o bloco embalados pelo afoxé.
Tal clima de paquera permeia
toda a festividade, claro que mesmo os beijos quando alcançam uma proporção épica podem
trazer alguns reveses à saúde como transmissão de doenças, contudo sem entrar
nessa seara ou na discussão dessas relações meramente objetais, o que deve valer é a vontade de ambos para o
beijo porque caso se dê a revelia ai já implica em ato delituoso merecidamente passível de punição.
Em um
clima permissivo, regado a álcool e outras drogas, regido pela exacerbação do
prazer que deve ser desfrutado ao máximo, em todo o seu potencial, alguns
foliões passam do beijo e apesar de preservativos serem distribuídos no decorrer dos circuitos,
apesar desses esforços, por motivos mil, mesmo assim, lá para setembro/outubro
nascem os "filhos do carnaval" (se não forem abortados) e saber
quem é o pai pode se tornar um enigma muito difícil de ser desvendado.
Durante a festa também postos
de testagem rápida de HIV/Aids são instalados (o que efetivamente possui
baixíssima validade, uma vez que se contraído durante o carnaval, não
haverá tempo de detecção e os que já são portadores não me parecem ter nessa
ocasião momento propício para saberem dessa notícia e sim dirigindo-se aos
centros de testagem que oferecem um real suporte psicológico e de
acompanhamento medicamentoso).
MÚLTIPLAS INTENÇÕES...
As pessoas que vão
para essa festividade são de mil matizes, a maioria realmente quer se divertir
e desfrutar dos prazeres legítimos e outros tão urgentemente necessários quanto descartáveis. A
maior parte acredita que beber (muitas vezes bastante) é indispensável, muitos
jovens saem com seus amigos, àquela turma boa, querendo mesmo é “pular”,
“ficar”, “curtir’... Entretanto, existem os que saem não só com o coração armado,
mas também com as mãos, com sede de sangue, pensam em roubar, brigar, agredir,
se vingar, o que inclui até mesmo matar, aproveitando o volume da multidão para agir
e facilmente se despistar. Os boletins dos hospitais, especialmente de urgência
e emergência, assim como dos postos colocados ao longo dos percursos são
lamentáveis e as imagens que com certeza os programas sensacionalistas
mostrarão também serão.
Mesmo com policiais
na rua (trazidos inclusive do interior para a capital) pretendendo coibir
atuações criminosas e violentas, estes não são capazes de conter completamente
tais ações e pela própria formação truculenta também acabam por atuar mais na
repressão do que na prevenção tendo como maior base de intervenção a
violência. Alguns policiais despreparados (quero acreditar/sonhar que uma
minoria) abusarão do poder e baterão a torto e a direita majoritariamente em
jovens negros, tendo claramente como pano de fundo questões socioeconômicas e raciais.
Durante as ações o
tráfico de drogas é um dos elementos que despontam nas apreensões,
apesar do encarceramento atingir mais fortemente os não
abastados, o tráfico permeia todas as classes sociais envolvidas na festividade
também circulando nos camarotes mais requintados, camarotes que diga-se de
passagem chegam ao cúmulo de conseguir concessão para serem erguidos em plena
praça pública, utilizando um espaço de direito do cidadão para fins particulares,
revestindo valor desproporcional ao ganho à esfera pública pela sua utilização.
QUARTA-FEIRA DE CINZAS
Depois de tanto pular e outros de trabalharem, a
quarta-feira de cinzas chegará, aqueles que trabalharam juntamente com os que
não tiveram condições de retornar para casa e dormiram na areia, ficarão para
participar do inacreditável arrastão... Como sempre os banheiros químicos não
darão conta das multidões e os jatos de água e sabão serão aquém do necessário,
assim, somente a chuva poderá lavar efetivamente esta cidade, arquibancadas e
camarotes começarão a ser desmontados e se não forem devidamente cobrados pelos
órgãos de fiscalização, demorarão em fazer a cidade voltar à normalidade tendo
o engarrafamento como um dos mais desagradáveis efeitos colaterais (desde a
construção até o desmonte).
Carnaval é uma festa onde
as diferenças (positivas e negativas) construídas ao longo da história se
apresentam em poucos dias, por isso, ficam tão ampliadas às alegrias e
tragédias. É mesmo urgente pensá-lo e refleti-lo em nível de Brasil, para que
nos conhecendo melhor possamos propor as mudanças mais que necessárias
inclusive pensando meios cada vez mais efetivos de coibir que brasileiros ou
estrangeiros saiam de seus estados ou países e usem esse momento para fazerem
turismo sexual, soltarem suas feras, deixarem seus lixos e depois voltarem para
suas casas nos deixando com feridas que tornam a ser reabertas a cada
fevereiro e não cicatrizam jamais por não deixarem de fazer vítimas.
Interessante o dado da
pesquisa divulgada no ano de 2013 pela secretaria estadual de cultura em
parceria com a superintendência de estudos econômicos e sociais da Bahia que
revela que 77,9% dos soteropolitanos não participam da festa momesca, viajando
ou permanecendo em casa assistindo pela TV, pelo jeito carnaval tem se tornado
uma festa para visitantes.
EM FIM...
Brincar com responsabilidade, na pipoca, no
bloco, no camarote, tomar cerveja para refrescar (ainda que água, especialmente
de coco e sucos sejam além de refrescantes, hidratantes, justo oposto
do álcool), beber socialmente, sem fazer disso a mola propulsora para se sentir
bem e se divertir, manter o coração desarmado, a mente consciente sem o direito
de perder a lucidez e agir com insânia, sem ressacas físicas ou morais parece
ser o modo mais equilibrado de vivenciar este período que nos convida a
exacerbações... Apesar das peculiaridades de cada estado em comemorar,
precisamos saber o que significa ser o país do carnaval e estar entre as
cidades que promovem a festa. Para quem sabe brincar e vai para o carnaval
divirta-se e muito, para quem é de descanso, aproveita o período para
recarregar as baterias, do modo que melhor aprouver bom período carnavalesco para todos!!