O Surgimento
Desenvolvida no continente africano, foi de lá que veio o primeiro
hominídeo possibilitando o florescer da raça humana, o que significa
dizer que sim, a cor fundante de nossa raça era negra e tal concentração de
melanina, bem como os fios dos cabelos crespos serviam como proteção à caixa craniana diante dos
raios solares, sendo recursos adaptativos sem os quais provavelmente naquele
tempo a espécie não teria sobrevivido.
Com o afastamento do continente africano para outras zonas do globo
terrestre onde existiam temperaturas menos elevadas, a necessidade de
concentração de melanina vai sendo atenuada, o que produz o embranquecimento,
bem como o desencaracolamento dos cabelos e o afilamento do nariz que serve
como recurso para aquecer melhor o ar num clima mais frio e umidificar o ar
seco inspirado. Ou seja, as mudanças se dão sempre como recursos que atendem a
melhor adaptabilidade possível do animal humano ao seu habitat, gerando
registros genéticos que originam as diferentes etnias.
Hoje em uma sociedade ainda marcadamente racista, por uma herança
maldita de uma série de construções sociais anteriores (que recebem manutenção
cotidiana por parte daqueles que querem manter o status quo), conseguimos
utilizar tais diferenciações extremamente valiosas, como meio de opressão e
hierarquização a partir de padrões equivocados e falsos pressupostos, sem a
análise crítica de que são construções historicamente constituídas e que não só
podem como devem ser desfeitas.
A África
Continente fértil e rico por natureza, somando hoje 54 países, não foi apenas o berço da espécie, bem como o solo onde se desenvolveu uma das mais importantes civilizações antigas, a egípcia, a qual, ao contrário do que a
cinematografia notadamente norte-americana se esforçou em reproduzir como
brancos ou “morenos”, era constituída por negros que foram os responsáveis pelo
desenvolvimento de um complexo sistema político, econômico e sócio-cultural.
Essa civilização promoveu o desenvolvimento da escrita,
agricultura, medicina, comércio, arquitetura, navegação, extração de minério,
matemática entre outros aspectos que exemplificam a inegável inteligência,
sofisticação e legado para todas as civilizações posteriores que esse
continente ofertou e continua a ofertar.
Vale ressaltar que desde essa época já existiam diversas formas de
escravatura. A história global tem sido um repetir de guerras, invasão, espoliamento e submissão de um povo ao outro sempre movido pela insânia da ganância
humana. A América Latina não foi um caso de exceção.
A Escravidão
Até
onde se sabe, o Brasil foi “descoberto” por Cabral, um navegador que trazia em
sua nau, entre outros, uma série de degredados, criminosos portugueses sentenciados, portadores de diversas doenças que não só abateram muitos membros da sociedade indígena,
como na maioria das vezes a partir de estupros foram dando origem à
miscigenação que nos é característica, e a qual posteriormente também foi "encorporado" o povo negro de modo certamente não menos violento.
E entre
descobrir a rica terra do pau brasilis e fazê-la colônia de Portugal, temos
todo o desenrolar da história amplamente difundida que já conhecemos, mas aqui
interessa questionar: E os africanos nesse
contexto?
Já
existindo como perverso motor da economia mundial, a escravidão fez com que
esse povo fosse trazido da África em seus mais diferentes países, arrancados de
suas raízes, exilados de sua terra, cultura, família... Tendo invalidado a sua
constituição hierárquica muitas vezes alicerçada em reinados e principados, o
povo negro africano foi expatriado, morrendo aos milhões nas viagens de navio e quando resistindo, ao chegarem no Brasil, foram escravizados e tornados moeda de troca como mercadoria corrente.
Contudo,
essa história de fato não é a de um povo impotente que foi subjugado sem
batalhar ou resistir. Trazendo o seu saber ancestral, a sua sapiência, sua
força foi expressa na capoeira, por exemplo, como uma das possibilidades de
luta, além de incontáveis atos de resistência e enfrentamento direto e indireto
que fez surgir diversos quilombos, além de investidas de revolução protagonizadas por valiosos
guerreiros, homens e mulheres que podem ser sintetizados na figura de Zumbi e Zeferina os quais deixaram um imenso legado, cujo patrimônio é material e imaterial.
No
avançar da história, quando foi decretada o fim da escravidão, ao invés de obter
um efetivo reparo pelo holocausto que sofreram por quase quatro séculos, uma
das primeiras leis a serem criadas pós decreto foi a “Lei da Vadiagem” que
autorizava prender o indivíduo que estivesse “vagando” e assim sem reparação,
de bolsos vazios, muitas documentações queimadas, definitivamente abandonados a
própria sorte, diante de uma política estatal de embranquecimento que importava
estrangeiros, tais sujeitos foram empurrados para a margem dos centros, para os
sub-trabalhos, obrigados a sobreviver sem o pleno direito a cidadania, em
condições de insalubridade fragrante.
Tal
contexto é o fio condutor que explica a origem do que hoje se configura como as denominadas "comunidades" e sua
relação esquizofrênica com o Estado que ora é ausente nos aspectos que lhe são
pertinentes como educação, saúde e renda e ora garante com prontidão a sua vergonhosa
presença meramente repressiva e assassina (sem exagero algum). Sendo por tanto
até os nossos dias um Estado cuja lógica de funcionamento continua perversa e
racista, ratificando em incessante continuidade os pressupostos que deram origem, por
exemplo, a corporações infames como a Polícia Militar na Bahia que até hoje vigem sob o mesmo paradigma constituinte.
Diferenças e desigualdades
O
ser humano como ser social, constrói, assimila e transmite crenças, valores e
costumes que formam esse grande arcabouço denominado de cultura, a qual acaba
por constituir um conjunto ético e moral que norteia (muitas vezes dita)
formas de existir e interpretar o mundo.
Na
contemporaneidade, nessa cultura cuja lógica primordial é o uso, abuso e
descarte, o intercruzamento de duas lógicas perversas: capitalismo e racismo, faz
com que aja uma sobreposição maldita que pode ser testemunhada a olho nu e
facilmente correlacionada nos dados estatísticos das mais simples pesquisas.
São os negros que recebem menores salários, que estão nos trabalhos informais, que estudam menos, os que atuam nas funções
socialmente subalternizadas, os que fazem uso de um sistema de saúde e educação
precarizados, que estão em zonas de moradias irregulares, sem falar no mapa da
violência com seus dados sanguinários.
Parafraseando Hamilton Borges (um dos lideres do
Movimento Reaja, herdeiro na linhagem direta de Zumbi e Zeferina), os negros
chegaram acorrentados e continuam, afinal são eles que lotam as prisões, que
são mortos e enterrados em cova rasa como se suas vidas não valessem nada e
isso como vimos não é gratuito é fruto de uma construção histórica.
Foram duros golpes na dignidade humana, na auto-estima,
todos os elementos da cultura de um povo foram desvalorizados, tratados com
sacrilégio e o efeito não podia ser dos mais perversos: a aceitação dessas
crenças, uma vez que as ideologias da classe dominante foram assimiladas pela classe dominada, é como dizia Stevie Biko "A mais potente arma na mão do opressor é a mente do oprimido" e como ainda é grande essa opressão!
Nesse sentido, também é preciso lembrar Malcolm X em seu célebre
discurso: "Quem
te ensinou a odiar a textura do seu cabelo? Quem te ensinou a odiar a cor da
sua pele a tal ponto que você se alveja para ficar mais branco. Quem te ensinou a
odiar a forma do seu nariz e lábios? Quem te ensinou a odiar você mesmo da
cabeça aos pés? Quem te ensinou a odiar os seus iguais? Quem te ensinou a odiar
a sua raça tanto que vocês não querem estar perto uns dos outros?" Mas, isso vem mudando!
Reconhecimento
Sem
dúvidas é grave a situação, contudo,
não é possível cair no pessimismo porque esse em nada pode contribuir
para mudança, pelo contrário... Mesmo
a passos lentos, é fundamental falar das iniciativas de reparação, dos
grupos de enfrentamento da sociedade civil organizada, do conhecimento da
história crítica por uma juventude antenada que não compra a "história oficial" como verdade definitiva (até porque não é), e sobretudo disposta a mudar esse cenário. Afinal, se o sujeito não for capaz de pensar a sua condição também como
resultado de uma construção sócio-histórica, ele se perde na rota, se descontextualiza, culpabiliza ou se vitimiza, interiorizando essa lógica racista que perpassa a
todos e requer lúcido enfrentamento.
Mudança de Mentalidade
Temos muito que caminhar até chegarmos a ser
uma sociedade onde as diferenças não impliquem em desigualdades, onde sejam
ofertadas reais oportunidades de cidadania a todos e o movimento de auto-afirmação, luta, denúncia,
enfrentamento e resistência com posicionamento crítico, além da fomentação imprescindível da
auto-estima, vem certamente crescendo a olhos vistos nessa direção de modo a engendrar mudanças no Estado e na sociedade.
Apesar do protagonismo ser de quem tem na
pele e na consciência a chaga histórica que necessita cicatrizar, essa
discussão não é apenas dos negros, é também dos pardos, brancos e porque não dizer dos indígenas, ora, é de todos que querem uma sociedade melhor! E os brancos em especial tem muito que falar, quando
conscientes da origem e do que representa essa condição de privilégio, nenhuma
mentalidade com pensamento coerente,
racional, pode querer que tudo permaneça no estado de coisas em que está, essa
condição de privilégio também é muito vergonhosa.
Quando houver proporcionalidade
sem estranhamento por parte de quem está sendo atendido no hospital de médicos
negros, pardos e brancos, bem como na figura por exemplo de juízes e em outras instâncias de poder, saberemos que a chaga se não cicatrizou estará em vias de cicatrizar e o Brasil se tornará um país verdadeiramente de todos, onde ninguém tenha que viver se sentindo em diáspora, precisamos dessa transformação premente aqui e no mundo e cada um de nós podemos contribuir no limite de nossas possibilidades para fazer com que esses novos tempos não se demorem a chegar!
Afinal: “Quem aceita o mal sem protestar, coopera com ele”.
Martin Luther King