"As maiores almas são capazes dos maiores vícios, como também das maiores virtudes".
Art.148. O exercício da virtude é um excelente remédio contra as paixões.
Se bem que essas emoções inferiores nos atinjam mais de perto
e possuam, consequentemente, muito mais poder sobre nós do que as paixões que
se encontram com elas, e das quais diferem, é certo que, uma vez que a alma
tenha sempre do que se contentar em seu íntimo, todas as perturbações que
provêm de outras partes não dispõem de poder algum para prejudicá-la; mas antes
servem para aumentar a sua alegria, pelo fato de, vendo que não pode ser por
eles ofendida, conhece com isso sua
própria perfeição. E, para que a nossa alma tenha por que estar contente,
necessita somente seguir estritamente a virtude. Pois, quem quer que tenha
vivido de tal forma que sua consciência não possa censurá-lo de jamais haver
deixado de fazer todas as coisas que reputou serem as melhores (que é o que
denomino aqui seguir a virtude), recebe daí uma satisfação tão intensa para
torná-lo feliz que os mais veementes esforços da paixão jamais têm poder suficiente para perturbar a tranquilidade de sua alma.
Art.152. Por que motivo podemos estimar-nos.
Posto que uma das principais partes da sabedoria é saber de
que maneira e por que motivo cada pessoa deve estimar-se ou desprezar-se,
exporei aqui minha opinião. Percebo em nós somente uma coisa que possa nos
fornecer a justa razão de nos estimarmos, que é a utilização de nosso
livre-arbítrio e o domínio que possuímos sobre as nossas vontades; pois é
apenas pelas ações que dependem desse livre-arbítrio que podemos com razão ser
elogiados ou reprovados, e ele nos torna de algum modo semelhantes a Deus,
fazendo-nos senhores de nós mesmos, desde que não abdiquemos, por covardia, dos
direitos que ele nos outorga.
[...] Se evito exprimir meu juízo a respeito de uma coisa,
quando não a concebo com bastante clareza e distinção, é evidente que o emprego
muito bem e que não estou equivocado; porém, se decido negá-la ou afirmá-la,
então não emprego como devo meu livre-arbítrio; se garanto o que não é
verdadeiro, é evidente que me equivoco, e mesmo que julgue de acordo com a
verdade, isto não acontece, a não ser por acaso e eu não deixo de errar e de
empregar mal meu livre-arbítrio; pois a razão nos ensina que o conhecimento do
entendimento deve sempre vir antes da determinação da vontade.
Descartes em As Paixões da Alma